Profª de Filosofia e Sociologia da Rede Estadual de Goiás desde 2010.
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[3ª Série] Filosofia: Thomas Hobbes e o "Leviatã"

terça-feira, 29 de abril de 2014



Filosofia Política de Thomas Hobbes – O Leviatã


Aspectos relevantes da Antropologia Filosófica de Hobbes:


Em sua obra Leviatã, Hobbes afirma que o homem é naturalmente ruim e antissocial. É ruim visto que ele é governado pelas paixões e desta forma busca apenas fins puramente egoístas. É antissocial, também se referindo às paixões, pois dado que procura apenas benefícios particulares e é movido por elas, é capaz de prejudicar e até matar para ter seu desejo realizado.


Os argumentos acerca do homem, defendidos por Hobbes difere em alguns aspectos da argumentação de Aristóteles. Enquanto Hobbes afirma que o homem é um ser antissocial, incapaz de viver em sociedade, em estágio natural, porque busca seus desejos particulares, Aristóteles, em A Política, nos diz que o home é um animal político e, vivendo em sociedade, todos procuram um bem em comum, que é a Felicidade.

Entretanto, o homem espontaneamente não vive em sociedade. Quando eles se reúnem para constituir uma, isso ocorre dado o medo e o perigo de morte constante que caracteriza o “estado de natureza”.


Outro aspecto que difere a teoria de Thomas Hobbes da de Aristóteles é quanto à igualdade dos homens. Aristóteles vê na natureza humana diferenças intrínsecas. Enquanto um homem pode exercer atividade intelectual e ser governante, há outros que não são capazes disso. E, é com base nessa diferença natural que Aristóteles justifica a escravidão. Hobbes, ao contrário, não vê diferenças entre os homens, visto que todos são naturalmente governados pelas paixões e com relação ao governante, ele diz que esse deve ser eleito mediante o voto de todos os indivíduos que queiram sair do estado natural, onde todos podem tudo.


O problema das formas de governo:


Para Hobbes, há apenas três formas de governo: monarquia, democracia e aristocracia. A tirania e a oligarquia são variações da monarquia e da aristocracia.


Quanto à questão das formas de governo, o filósofo vê diferenças em relação ao poder do governante. Na democracia, o poder está nas mãos de representantes do povo; na aristocracia, nas mãos de poucos. Segundo ele, estas duas formas de governo têm em comum o poder dividido e o poder dividido entre poucos ou muitos está condenado à dissolução. Dado ser própria da natureza humana ser movida pelas paixões, e o ser humano sempre procurar por poder, honras e glórias, no governo em que o poder está dividido ele estará também mais vulnerável a guerras internas por causa da busca pelo poder.


O filósofo faz uma analogia: assim como não é possível existir mais de um Deus soberano e onipotente, não pode existir um estado em que seu poder esteja dissolvido. Só há soberania se houver um governante, caso contrário o estado não poderá se sustentar, por causa das guerras internas pela busca de mais poder entre seus representantes.


A única forma de governo que Hobbes considera possível de sustentar um estado ou reino é a monarquia. Na monarquia, o soberano tem em suas mãos todo o poder necessário para garantir a tranquilidade no interior do estado. Ele é a fonte de justiça. Aquilo que ele determinar será lei e deverá ser cumprida. Mesmo que ordene a um súdito tentar contra Deus, este deve obedecê-lo visto está submetido às ordens e às leis do soberano.

A monarquia só funciona se for hereditária. A hereditariedade do poder garante que os homens, após a morte do seu rei, não retornem a situação anárquica em que viviam antes do contrato social. O novo rei não necessariamente precisa ser o filho do soberano. Ele poderá ser aquele que o soberano nomear mediante um testamento.


Aspectos relevantes da argumentação teológica de Thomas Hobbes:


Para Hobbes e os filósofos políticos modernos em geral, não é possível através da razão conhecer Deus. Ele não nega Deus, ele admite a existência de um primeiro motor eterno que gerou todas as coisas. Entretanto, diferentemente dos medievais, afirma que não nos é possível conhecer Deus pelo o que está dado (a natureza). Segundo o autor, a religião é fruto da imaginação do homem. Por não conseguir achar respostas, causas para as coisas e os fenômenos, tente a dar explicações sobrenaturais para os fatos. Ele dá exemplos: gregos e romanos, para cada ação (uma chuva ou tempestade) criavam um deus diferente.

Hobbes vai buscar nas Sagradas Escrituras principalmente no Antigo Testamento fundamentação teológica para a origem do contrato social. Porém, depois de fundamentado, o filósofo “deixa Deus de lado” afirmando que todo o poder deve estar nas mãos do soberano, inclusive o religioso.


Cabe ao soberano decidir que obras religiosas seus súditos terão acesso e também a interpretação dada a elas. O soberano também deve escolher a religião do estado e proibir as demais, para que dessa forma evite conflitos que podem abalar as estruturas do Estado.


A plenitude do poder caracteriza a filosofia política de Thomas Hobbes. O soberano pode ser descrito como um deus na terra, dado o imenso poder que possui.


Conceitos/sentenças chaves: contratualismo, contrato social, estado de natureza, estado de guerra, natureza humana, “o homem é o lobo do homem”.

Por Karoline Rodrigues 17 de maio de 2004.

[2ª Série] Filosofia: David Hume



DAVID HUME (1711-1776)

IMPRESSÕES E IDEIAS
Segundo Hume, o conhecimento é constituído por impressões e ideias. As impressões englobam as sensações, as emoções e as paixões. Possuem um elevado grau de força e vivacidade, porque correspondem a uma experiência presente ou atual. São a base, a origem, o ponto de partida dos conhecimentos.

As ideias são as representações ou imagens das impressões no pensamento. São memórias ou imagens enfraquecidas das impressões no pensamento. São menos vivas e intensas do que as impressões, já que estas são a causa das ideias.

Não pode existir ideia sem uma impressão prévia. Não há conhecimento fora dos limites impostos pelas impressões.

OS TIPOS DE CONHECIMENTO: DE RELAÇÕES DE IDEIAS E DE FATOS
Para Hume, o conhecimento de relação de ideias consiste em estabelecer relações entre as ideias que fazem parte de uma afirmação ou de um pensamento. Podemos relacionar ideias sem recorrer à experiência, embora todas as ideias derivem das impressões sensíveis.
 
O conhecimento de relações de ideias é independente dos fatos e, segundo Hume, não nos dá novas informações. Este tipo de conhecimento está principalmente ligado à lógica e à matemática. Trata-se de um conhecimento que relaciona conceitos ou ideias e que se baseia no princípio de não contradição.
 
Segundo Hume, o conhecimento humano também se refere a fatos, à experiência. Este conhecimento relativo aos fatos baseia-se na experiência sensível e é nos proporcionado pelas nossas impressões. O conhecimento de fatos não se baseia no princípio de não contradição, já que é possível afirmar o contrário de um fato.
 
A verdade ou falsidade de um conhecimento de fato só pode ser determinada através do confronto com a experiência, isto é, a posteriori.

O PROBLEMA DA CAUSALIDADE
Hume diz-nos que todas as ideias derivam de impressões sensíveis. Assim, do que não há impressão sensível não há conhecimento. Deste modo, não podemos dizer que tenhamos conhecimento a priori da causa de um acontecimento, ou de um fato.

Embora tendo consciência da importância que o princípio de causalidade teve na história da humanidade, Hume vai submetê-la a uma crítica rigorosa. Segundo David Hume, o nosso conhecimento dos fotos restringe-se às impressões atuais e às recordações de impressões passadas. Assim, se não dispomos de impressões relativas ao que acontecerá no futuro, também não possuímos o conhecimento dos fatos futuros. 
Não podemos dizer o que acontece no futuro porque um fato futuro ainda não aconteceu.
 
Contudo, há muitos fatos que esperamos que se verifiquem no futuro. Por exemplo, esperamos que um papel se queime se o atirarmos ao fogo. Esta certeza que julgamos ter (que o papel se queima) tem por base a noção de causa (nós realizamos uma inferência causal), ou seja, atribuímos ao fogo a causa de o papel se queimar. Sucede que, segundo Hume, não dispomos de qualquer impressão da ideia de causalidade necessária entre os fenômenos.

Hume afirma que só a partir da experiência é que se pode conhecer a relação entre a causa e o efeito. Para o autor escocês, não se pode ultrapassar o que a experiência nos permite.     A experiência é, pois, a única fonte de validade dos conhecimentos de fatos. Quer dizer que só podemos ter um conhecimento a posteriori.

A única coisa que sabemos é que entre dois fenômenos se verificou, no passado, uma sucessão constante, ou seja, que a seguir a um determinado fato ocorreu sempre um mesmo fato.

CONCLUSÕES
Para D. Hume, é o hábito que nos leva a inferir uma relação de causa e efeito entre dois fenômenos. Se no passado ocorreu sempre um determinado fato a seguir a outro, então nós esperamos que no presente e no futuro também ocorra assim.

O hábito e o costume permitem-nos partir de experiências passadas e presentes em direção ao futuro. Por isso, o nosso conhecimento de fatos futuros não é um conhecimento rigoroso, é apenas uma convicção que se baseia num princípio psicológico: o hábito.

O hábito é, no entanto, um guia importante na vida prática e no dia a dia. Uma vez que ainda não vivemos o futuro, o hábito permite-nos esperar o que poderá acontecer e leva-nos a ter prudência e cuidado, ou boas expectativas. Enquanto seres humanos, temos vontade (e adaptamo-nos à ideia) de que o futuro seja previsível e, portanto, controlável.


[3ª Série] Filosofia: Nicolau Maquiavel e "O Príncipe"

domingo, 27 de abril de 2014


Filosofia Política - Nicolau Maquiavel e “O Príncipe”


Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tomam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões comerciantes, enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir.

As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência diante dos barões, reis, papas e imperadores.

Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscita um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores.

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.

Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricas, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tornadas como exemplos da liberdade republicana. Imitá-las é valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Falam-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana. Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel.

Antes de O Príncipe

Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a ideia de que o poder seria uma graça ou um favor divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar outra ideia qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.

Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas:

1. Encontram para a política um fundamento anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para alguns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na ideia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há, pois, algo - Deus, Natureza ou razão - anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;

2. Afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;

3. Assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;

4. Classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com o os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso.

Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.

Maquiavélico, maquiavelismo

Estas expressões são usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política como aos políticos, e a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc.,).

Falamos num "poder maquiavélico" para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição.

Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazer exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota, maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?

A revolução maquiaveliana

Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, viu as lutas europeias de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo via a fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja.

A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à ideia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.

Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura maquiaveliana:

1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um polo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse polo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais;

2. Maquiavel não aceita a ideia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade da política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei;

3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtú, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomai, e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido - o que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, por isso o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que souber criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;

4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político - tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver - poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.

Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo.

O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares.

O príncipe virtuoso

A tradição grega tornou ética e política inseparáveis, a tradição romana colocou nessa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e a tradição cristã transformou a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política, orientada pela ideia de justiça e bem comum. Esse conjunto de ideias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiaveliana que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.

Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido Inteiramente novo. A virtú do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtú é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtú alguma.

Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em alguns, ser inflexível.

O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.

Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.

A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtú política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder.

Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como maquiavélico. As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.

Para o Ocidente cristão do século XVI, O Príncipe maquiaveliano, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. A sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.

CHAUÍ, Marilena. Marilena Chauí, Ed. Ática, ano 2000, SP, pág. 200-204.